A alienação fiduciária é um instrumento amplamente utilizado no mercado financeiro para garantir créditos, no qual há transferência da propriedade fiduciária de determinado bem, alvo da garantia, de titularidade do devedor ao credor, mantendo a posse direta até que o débito seja integralmente quitado. Apesar de sua eficácia em reduzir riscos para as instituições financeiras em caso de inadimplência do devedor, esse mecanismo gera situações de vulnerabilidade ao consumidor, particularmente quando envolve bem imóvel, caracterizado como bem de família.
Nessa perspectiva, o princípio da função social dos contratos emerge como um instrumento fundamental para equilibrar as relações contratuais, assegurando que os interesses individuais não se sobreponham às necessidades sociais e à dignidade do contratante em posição mais frágil.
O princípio da função social dos contratos, consagrado no artigo 421 do Código Civil brasileiro, reforça que os contratos devem atender não apenas aos interesses das partes, mas também às necessidades sociais e à preservação da dignidade humana. Esse princípio está, ainda que indiretamente, relacionado aos princípios constitucionais que garantem a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade justa e solidária.
Nos contratos de alienação fiduciária, esse princípio pode ser aplicado para limitar práticas que coloquem o devedor em desvantagem excessiva ou comprometam seu direito à moradia, especialmente quando o imóvel dado em garantia é considerado bem de família.
A legislação brasileira protege o bem de família como patrimônio essencial para a sobrevivência digna do núcleo familiar. A Lei nº 8.009/1990 estabelece a impenhorabilidade desse bem, salvo exceções expressamente previstas, como dívidas decorrentes do próprio financiamento habitacional. Essa proteção encontra respaldo na Constituição Federal, particularmente no artigo 6º, que garante o direito à moradia como um dos direitos sociais fundamentais. Ademais, o artigo 5º, XXIII, estabelece que a propriedade deve atender a sua função social, impedindo seu uso de forma que contrarie o bem comum.
Mesmo nas hipóteses legais de execução, o princípio da função social pode e deve ser invocado para prevenir a perda do bem de família de forma que viole direitos fundamentais, garantindo que a execução respeite os limites da dignidade da pessoa humana e o direito à moradia.
Revisão contratual
Apesar dessas garantias constitucionais, bancos e instituições financeiras fazem uso da alienação fiduciária como forma de pressionar devedores a quitarem dívidas, mesmo que isso implique a perda do único bem de família. Nos contratos bancários, o contratante é sujeito a assinar contratos de adesão, sem qualquer possibilidade de revisões, com cláusulas que favorecem excessivamente o credor, ferindo os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual.
Diante dessas situações, a revisão judicial dos contratos de alienação fiduciária deve ser uma ferramenta importante para proteger os direitos dos devedores. Os tribunais brasileiros têm reconhecido a possibilidade de revisar contratos que contenham cláusulas abusivas ou que prejudiquem a função social do contrato.
Por exemplo, em casos em que o saldo devedor é inflado por cobranças indevidas ou onde o banco se recusa a renegociar a dívida, é possível pleitear a revisão do contrato com base nos princípios da função social e da boa-fé objetiva. Além disso, é possível argumentar que a execução do bem de família deve ser suspensa ou invalidada quando houver manifesta abusividade. Esses pedidos encontram respaldo no artigo 5º, XXXV, da Constituição, que garante o direito de acesso ao Judiciário para a defesa de direitos ameaçados ou lesados.
O princípio da função social dos contratos representa uma importante ferramenta para assegurar que os contratos de alienação fiduciária sejam instrumentos de segurança jurídica e não de exclusão social. No contexto de imóveis que constituem bem de família, é imprescindível que o Judiciário e os operadores do Direito atuem para equilibrar os interesses das partes, protegendo o consumidor contra práticas abusivas de bancos e garantindo a preservação do direito à moradia.
A função social não é apenas um ideal; é uma obrigatoriedade prevista na Constituição Federal e que permeia todas as relações contratuais, sendo essencial para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Larissa Alves da Silva de Amorim
é bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e em Direito Empresarial pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e advogada no escritório Granito Boneli Advogados.
Fonte: Conjur